terça-feira, 5 de maio de 2009

Faca, só lâmina

Bobagens à parte...

Um dia desses, o Gabriel me mostrou um trabalho que faziam junto ao pessoal do Mackenzie, uma tipologia para um grupo do MST. Um trabalho, digamos, no hard: desenhar uma tipologia que não saísse por mais de R$ 10.000 (a construção). Muito difícil, se a resposta tivesse que ser dada dentro das nossas expectativas de boa habitação, e das expectativas dos "clientes" de suas futuras habitações, ainda mais considerando o estado de habitação em que se encontravam (barracos de madeira e telha de fibro-cimento).

Mas, talvez, pudéssemos deixar de lado essa idéia de mudar da água pro vinho. Talvez bastasse se contentar com água potável. É que no Brasil (será que quero dizer São Paulo?), hoje a arquitetura é vista como um luxo, quando, de fato, esse luxo vendido não tem nada de arquitetura. É água que precisamos, não vinho.

Esse pessoal precisa desse mínimo de dignidade, mas sonha com mais (qualquer ser humano o faz). E querer limitar um projeto de arquitetura a esse orçamento talvez seja mais um exemplo das bizarrices que nossa sociedade admite. Ao que me informaram, um banco estatal não poderia financiar parte do projeto, por algum motivo.

Nessa situação extrema, me ocorre que talvez seja admissível fazer essa construção mínima: só estrutura e equipamentos fundamentais (o tal do casco mínimo, que ensaiamos na hmp do bixiga): uma faca só lâmina - com todas suas inconveniências, mas também suas soluções.

Lembrando um excerto deste poema de João Cabral de Melo Neto:

UMA FACA SÓ LÂMINA
(ou: serventia das idéias fixas)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

(Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas/, 1955)

(retirado de http://www.academia.org.br)

Enfim, talvez pensar essa unidade: duas lajes. Um teto e um chão. A maioria dos sem-teto encontra isso em qualquer viaduto da cidade. Mas é inadmissível, ainda. Aceitar isso seria uma deformação. Esse estudo, porém, quer revisar a expectativa que criamos para a arquitetura. Afirmar que um habitat não deve se confundir com forro de gesso e fórmica imitando madeira na parede.





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